Re-invenção
Por Carla Spinoza
“Não uma imagem justa, senão ‘justo’ uma imagem”. – Jean-Luc Godard
Na Bolívia, a folha de coca é uma planta sagrada que tem sido cultivada e consumida pelos povos indígenas há 5000 anos. A sua transcendência deve-se à resistência da cosmovisão andina, que a reconhece como uma companheira essencial para a vida social, medicinal e ritual. No entanto, com a invenção europeia da cocaína no século XIX, a folha de coca foi estigmatizada, devido à associação indiscriminada com a cocaína, e consequentemente com o tráfico de droga, como resultado da chamada luta contra a droga, provocando uma analogia indevida entre os seus usos e significados entre o local e o global, apagando as raízes históricas e culturais do uso milenar da planta.
A série fotográfica intitulada Re-invención (2018), é uma tentativa de investigar desde a contemporaneidade boliviana, a complexa relação entre a coca-cocaína como um dos fenômenos característicos das últimas décadas em relação ao protagonismo sócio-político indígena na Bolívia.
Em Janeiro de 2006, a sul dos Andes, nas ruínas da desaparecida cultura Tihuanacota, “com a permissão do pai sol e da mãe lua e da sagrada folha de coca e de todos os espíritos protetores da natureza”1, o cultivador de coca Evo Morales tornou-se o primeiro presidente indígena da Bolívia. A sua chegada marcou um antes e um depois para a história da América Latina em geral, mas em particular para um dos fenômenos mais salientes e complexos do mundo, marcando um divisor de águas na luta internacional contra a droga e um marco histórico para os movimentos sociais e sindicais do país.
Comecei o projeto fazendo uma coleção de imagens identificadas em arquivos de jornais e meios digitais, com representações midiáticas de Evo Morales como o máximo representante do movimento dos produtores de coca e presidente do Estado Plurinacional da Bolívia. Uma nova figura política que levou a uma reconfiguração da identidade local, permitindo a reinvenção de uma identidade marginalizada. Um exercício entre imagem-montagem que toma como eixo um corpo indígena em gestos de poder, prazer e heroísmo, criando um personagem no sentido de propor uma imagem alternativa e ainda pendente, que não procura substituir a antiga mas sim imaginar uma subjetividade crítica. Na sua condição de artífice e imaginativa, explorando clichês e combinando elementos da sua própria identidade étnica com elementos ocidentais.
1 Morales, E. “Discurso del Presidente Evo Morales en la Ceremonia Ancestral”. 22 de Janeiro de 2015. Tiwanaku. https://www.youtube.com/watch? v=gLITyW5DsTE&t=17s. Acesso em 5 de Março de 2019.