Natural de Mata Grande, interior do Sertão de Alagoas, sou graduado em Artes Visuais pela FMU. Enquanto artista visual desenvolvo meus trabalhos a partir de memórias ancestrais colhidas em antigos álbuns de fotografia do acervo privado de minha família, questionando quais lugares são reservados para preservar a memória de pessoas afroindígenas e idosas dissidentes de gênero nos álbuns fotográficos. Através de colagens, instalações, performances, intervenções manuais e processos de experimentações em suporte fotográfico, preencho lacunas e ficciono arquivos como uma forma de garantir que minhas ancestrais sejam lembradas e que permaneçam vivas. Em 2021 realizei a exposição individual O brilho das velhices LGBTs. Em 2022 participei da residência Mira Latina, #3 Residência Edifício Vera e Memórias Fragmentadas. Também em 2022 participei das exposições: Nas rugas do tempo e Parada 7 – Arte em resistência, no Rio de Janeiro; da mostra Para você, Camnitzer e do 19° Território da arte de Araraquara, com o tema À procura de muyrakytã, em São Paulo.
Mira Latina
HABITAR O IMPRONUNCIÁVEL
Por Messias Souza
Habitar o impronunciável é uma performance que reflete sobre antigas lembranças de meu avô Martinho Alves da Silva (1931-2002). Marcado pela experiência racial e dissidente de gênero enquanto uma bixafroíndigena, meu avô teve, como consequência de sua identidade, a memória rasurada e soterrada nos álbuns de fotografias de nossa família. Por duas décadas de silêncio e vergonha sua história permaneceu eclipsada, o que me levou a refletir sobre os álbuns de família não apenas como um espaço neutro em que se costuma preservar histórias, mas também, por outro lado, como um local em que se esconde, oculta e silencia memórias segundo uma lógica colonial que delega o esquecimento às dissidências, às imagens-memórias de pessoas negras, LGBTQIA+ e indígenas.
Responsável pela cura e pela morte, Omolú é uma das principais divindades intimamente ligadas à ancestralidade da palha. Orixá oriundo da antiga sociedade do reino Daomé, voltado para a agricultura e para os segredos da terra e da cura, Omolú é filho de Nanã, senhora dos mortos e do barro, e uma das divindades que habita o mundo oculto dos segredos e das encantarias. Omolú é capaz de revisitar e trazer de volta presenças que outrora estiveram sob a luz do esquecimento.
No exercício de olhar para trás e trazer de volta a memória de meu avô, também há o desejo pulsante de preencher os espaços em branco sobre nossa origem familiar nos álbuns de fotografias. Uma cartografia afetiva que busca trazer à luz do momento presente a ascendência afroindígena de minha própria família, para honrar e transmitir nossa história para as futuras gerações.
No chão, a imagem de um círculo de areia guarda registros de uma performance realizada no estado de Alagoas para ativar a memória ancestral de meu corpo, através do contato com o elemento terra. Desenhos de passos e pontos riscados pelo chão deixados por quem veio antes de mim escreveram disruptivamente, ao seu modo, epistemologias com as plantas dos pés, rotas na memória e rezas pelo ar. Deixando sinais para que eu e as outras que virão não esqueçamos a ligação de nossas memórias com os povos da mata, da caatinga e da terra, assentes na encruzilhada entre o interior do sertão de Pernambuco e Alagoas, vivendo em diáspora na cidade de São Paulo. Um lembrete de que não somos uma única coisa e de que não seguimos em uma só direção.
Habitar o impronunciável é, portanto, um segredo desenterrado e ofertado. Um eco Bixancestral que teima em retornar para o bailar das lembranças em meu corpo. Um risco que assumo nesta busca pela reinvenção, pela ruptura e pela produção de novas memórias e forças vitais que possibilitem a sobrevivência da identidade étnica afroindígena de minha família. A produção de uma nova página repleta de imagens, identidades e memórias diversas que honram a história das Bixancestrais, garantindo a existência de nosso legado para as gerações futuras. Memórias que ecoam e brotam debaixo do chão para tornar-se visíveis outra vez. Que surgem das ruínas da vergonha entre uma lâmina e outra de fotografias. Lembranças em retomada que escorregam por debaixo do manto sagrado da palha de Omolú, surgindo de dentro das matas para preencher os espaços em branco nos álbuns de família.
Habitar o impronunciável (2022). Fotoperformace. São Miguel dos Milagres/AL. Registro de imagem: Mateo H. Acosta.